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PAISAGENS PORTÁTEIS, INSTANTES DE INTROSPECÇÃO

      Nesta exposição que abre o ciclo de 2013 na World Legend Gallery Artes & Letras, com 13 obras (uma coincidência que apetece sublinhar) de pintura recente de Manuel Vilarinho, voltamos a abrir janelas sobre a paisagem. Contudo, o que vemos sobre estas telas excede a pura marcação de exteriores ensolarados ou tempestuosos, de registos de luz alterando a percepção da folhagem ou das águas de um rio, ou o bafo húmido de um estuário sob a bruma matinal. O que aqui encontramos não é o corpo exterior do mundo retratado de acordo com a sua natureza ou um estado de espírito do seu autor, mas a assunção de memórias como fragmentos de vivências, como uma tessitura mais vasta. O que aqui encontramos é pura narrativa, reinvenção autobiográfica. A evocação da luz segue um processo semelhante àquele com que buscamos as palavras para contar uma história. ‘Quando eu era pequeno’ ou ‘antigamente havia aqui uma ponte que atravessava a ribeira’ ou ‘dantes, quando o vento soprava no Inverno e a chuva batia nos vidros’ ou. Ou.
      É esta a genealogia destas obras e, apesar disso, não há disjunção. Não há ‘ou’. A pintura de Manuel Vilarinho é o exercício da conjunção. Nela, tudo é somado, tudo é ‘e’, visto o autor ser um contador de histórias que tece as suas narrativas a partir da herança plástica dos artistas que admira e revisita (maioritariamente modernistas) e as cruza com as linhas de poemas e das próprias vidas/itinerários dos criadores literários que admira. Assim, se agora nos conta de Shelley, Keats, Cinatti, já antes nos falou de Walser, Heidegger...
      A essa herança junta Vilarinho as suas outras viagens pessoais: passeios no campo, percursos desdobrados pelas cidades, entradas em museus, visitas às casas de escritores, incursões nos mundos construídos pelas palavras desses outros — e ampliações de sentidos feitas por todos aqueles que o acompanham nas suas deambulações. Por isso mesmo, além dos títulos das suas pinturas, evocadores das viagens do autor, as linhas que ele próprio escreve resultam como espelhos, ampliando os sentidos, abrindo portas, fazendo suscitar a apetência por múltiplas leituras e itinerários.
Formalmente, a sua pintura evoca o fragmento que a memória guarda e a narrativa edifica. São resquícios de construções, vestígios do humano entre a luxuriante e feliz recordação do verde. A luz é benigna, mesmo quando os céus demonstram alterações que ameaçam tempestade. É cinematográfica e poética, crepuscular por vezes, erguida sobre palavras, sobre memórias de outros autores, de outros tempos — momentos felizes, mesmo que já sem retorno. Vejam-se, neste caso, os ‘frames’ "Jardim em Roma (crepúsculo) I e II", 2012.
      O fragmento amplia os sentidos, como um espelho partido multiplica a luz, os movimentos, os reflexos e aponta também a necessidade da nossa própria viagem pela pintura. A composição não se dá instantaneamente; deve ser percorrida com calma, para perceber os recantos e captar todas as nuances. Como sempre, quanto mais dados tivermos, maior será a nossa ‘com-preensão’ do contado.  São jardins, montanhas, rios, cabanas, troncos de árvores ("Wild West Wind (for Shelley) #3, 2010), itinerários de vidas ("A Longa Viagem de Ruy Cinatti # 1", 2011), desertos, fantasmas de edifícios há muito desaparecidos e sobrevoados por aviões.
      Formalmente, a pintura mantém os seus códigos. São manchas, linhas, breves sinais. Um poético trabalho lumínico que potencia a paleta e a aquece mesmo quando as cores são frias. Alguns dados simbólicos. Insinuações de formas ou de atmosferas, escassos registos inequívocos, oferecidos como pistas — caso dos binóculos em "Observatório de Aves", 2010. São dias solarengos e tardes que deslizam docemente a caminho da noite, com o fantasma de uma lua poderosa erguendo-se sobre um jardim. Raramente há sombras, como sempre acontece quando a memória entra em cena como a grande construtora.
      Por tudo isto, nestas janelas que abrimos sobre paisagens da alma, reconhecemos sensações e vontades do nosso percurso pessoal: algumas luzes ideais e, acima de tudo, o desejo de mantermos de cor os momentos que queremos transportar connosco para sempre, como pequenos quadros. Paisagens portáteis, instantes de introspecção.
 
Emília Ferreira