Não se pense que é o mar o domínio absoluto da pintura de Manuel Vilarinho, mas é pelo menos um dos seus lugares, uma das suas principais referências, um dos seus pontos de vista. Quer aquele que parte da própria natureza do mar, para invadir de verde e azul e também para lançar na superfície da pintura imediatos sinais marítimos: barcos, velas, casas nas escarpas, faróis, ouriços, muitos outros elementos que têm no litoral a sua origem. Quer ainda aquele ponto de vista (talvez o mais importante) que parte do próprio pintor: a sua ligação física à extensão física do mar. Que se completa na interacção da sua intimidade com o mar: complexa rede de sentimentos que envolve memória e afectividade e que vai determinar na pintura uma sequência de elos, ora vividos ora somente imaginados.
Não se julgue que a presença do mar, motivo da reunião em livro e em exposição de um conjunto representativo da obra de Manuel Vilarinho - pintura de 1986 a 2000 -, surge somente como exigência de uma especificidade paisagística ligada ao mar. Assim não é, de facto. Pois não estamos frente à simples leitura de recriadas marinhas, mas a todo um conjunto de factores que resultam de uma interpretação da história e da geografia que têm envolvido grande parte da vida do pintor e, sobretudo, a um constante estudo e análise, de particular conseguimento, de múltiplos momentos da história da pintura.
O mar surge neste trabalho do pintor como um batimento, como um pulsar. É esse o apego, a impressão (e também a expressividade maior) que nos vai ficar (e de um modo que perdura) quando nos confrontamos com este conjunto de obras. O mar tem nelas o lugar de um forte argumento, inescapável, tanto no que respeita à organicidade de cada uma das pinturas, pois dentro delas representa um elo aglutinador, como numa formulação preliminar da sua própria existência, enquanto espaços disponíveis a receberem o texto ou a questão expositiva que a pintura encerra.
Dentro dos títulos agora reunidos, o mar vai permitir, enquanto elo e enquanto batimento, que se proceda a uma forma (real) de se pensar o ser existente da imagem; criando-lhe analogias, substituições figuradas (os títulos das pinturas podem muito bem mostrar continuidades pictóricas ou afectivas) e um esforço de penetração mental e mesmo físico sobre os pontos de vista do pintor ou sobre a qualidade expressiva da narratividade que cada papel ou tela arrastam consigo. E o verbo arrastar traz-nos uma linha actuante de memórias bem próximas da condição física de marés, que arrastam no seu quebrar sobre as areias ou sobre as rochas costeiras uma imensidade de despojos e os levam de novo no seu refluir.
Coisas todas elas de abandono, como que sem valor; mas reflectem, em paralelismo, a quantidade imensa de outros objectos, de outras coisas, cujo existir somente tem sentido na consciência daquele que constrói cada uma destas pinturas. Objectos que foram do seu quotidiano e da sua privacidade expandem-se agora nas pinturas. Povoam com as suas particulares arquitecturas, todas elas de um desenho que contém uma história passada, envolvida no que foi útil ou simples. Um inventário recordado pelo pintor, pois para nós, enquanto espectadores, essas coisas não são mais do que objectos sinalizadores do que nos possa querer dizer a figura de um barco, de uma vela, de uma cadeira, de um copo, de um fruto, de uma nuvem, de uma onda. Mas dentro e fora da pintura, dentro e fora do pintor ou de qualquer espectador, o quadro lança-nos batimentos e a acção constante e ritmada de um pulsar e vibrar.
O mar é, nestes trabalhos, aquilo que une um universo de elementos dispersos,
quase sempre, senão sempre, sem qualquer ligação aparente entre si. Territórios estanques arrastados pelas correntes marítimas, por esses azuis intensos que, de certo modo, serão a exigência dos tons igualmente fortes que cobrem e envolvem aqui toda a figuração. O mar entra de um modo brusco na superfície compartimentada da pintura. Manuel Vilarinho nunca lhe oferece a plenitude da tela ou do papel. Compartimenta-o. Limita o seu horizonte. Todavia, o mar, dentro da contenção que lhe é imposta, e mesmo quando o pintor lhe atribui uma placidez estival, tem sempre consigo uma carga intensa e brutal. De onde irrompe uma capacidade de nos mostrar a existência do batimento, desse pulsar contínuo e contíguo aos objectos que vamos poder contemplar. Que transportam para a pintura e desta para o nosso olhar alternadas tempestades e acalmias.
Pertence ao mar a existência do batimento, que se exerce através do pulsar de um pequeno motor ou de um mínimo coração. Nestas pinturas exerce o processo condutor da nossa percepção, tal como num momento antecedente terá sido o formador reflexivo que levou o pintor a criar a dinamicidade que nos é agora revelada. O mar guia os múltiplos ângulos de interesse que cada pintura vai (ela mesma) encontrando em si, como se fosse levada por um construtivismo idealista desde o alto desse mar até ao relativismo psicológico que sempre conduz os passos daquele que se passeia à beira da rebentação ou que dentro de um barco sente o batimento de cada uma das ondas quebrado pelo contínuo avanço da proa.
Desse modo, cada onda que passa é um conhecimento, mas também é, em relação à onda anterior, um reconhecimento. Julgo que é entre este conhecer e este reconhecer que toda a pintura de Manuel Vilarinho se ergue; e de um modo bem particular os seus trabalhos que, de uma forma continuada, nos trazem o seu conhecimento e o seu reconhecimento da liquidez marinha.
Paremos um pouco em algumas destas obras. Assim, em «Rochedos na Costa» (1986) - a única presente que permaneceu inédita - os sentidos são decisivos para esta presença de um ser marítimo. Para nossa apreensão das coisas ditas do mar, o quadro abre para um intenso azul de céu que uma estrutura triangular vermelha centraliza, num gosto aliás insistente no trabalho pictórico de Vilarinho. Esse centralizar, esse pôr em destaque, esse limitar e barrar através
de uma fronteira como que pede um estudo e uma atenção particular não só do espectador (e o mar é uma das tradições da paisagem onde uma abertura do olhar pode levar-nos para uma presença do sublime, quer por meio do espectáculo tempestuoso quer pelo apaziguante) como do próprio pintor. Um azul ondeado pela presença de clarões de branco prolonga-se por um intenso e mais carregado azul-horizonte marítimo. Do centro do quadro expande-se de uma boca de fogo a terra que margina o mar, os «rochedos na costa».
«Rochedos» e «costa» que se manifestam e apreendem de uma forma tão fracturada e tão ampla que uma exclusiva dissecação analítica dificilmente os isola e, no entanto, estão lá os picos acerados das rochas marítimas ou pequenas cavidades que na rebentação as ondas cobrem; e que permitem uma explosão de mínimos organismos vivos, muitos deles visíveis à vista desarmada, por entre uma colorida flora marítima. A todo esse pertencer entre mar e terra vão-se juntando compartimentadas e irregulares divisões que contêm simplesmente uma cor ou repetidos traços que, na sucessão do seu esbater, se expandem de uma forma corrente (semelhante ao correr da água de uma a outra rocha, para de seguida se perder na fundura dos interstícios) e, digamos, importante. Com a importância que podemos dar ao nosso entender do voo das aves marítimas. Um entendimento que se transcreve pela visão, mas que não deixa igualmente de ter um lado audível, mesmo que ninguem ouça o voo de uma ave na distância que descreve no ar.
É a este ponto que pretendo chegar: a presença de uma psicologia intuitiva da matéria. Mecanismo que transporta para o quadro (e em Manuel Vilarinho esta noção de «quadro» revela-se uma imediata evidência, onde trabalha uma pré-elaborada narratividade) uma obsessão da matéria em metamorfose. Capaz de ser percorrido por intervenientes elementos que, por inteiro, pertencem e são matéria, tal como são uma ideia dessa matéria: o ruído, o peso, o cheiro, a coloração, o sentimento. «Rochedos na Costa»: não ouvimos nós o ruído das rochas mais pequenas batendo umas nas outras, pela acção do peso da massa de água que a rebentação marítima desloca? E não se prendem os nossos sentidos à presença intensa do cheiro das algas expostas ao marítimo apodrecimento?
«Sinais do Pintor» (1986) é uma tela que prolonga, como sempre desde o mar, esses intuitos. Um pincel, no canto inferior direito, bem próximo da assinatura do pintor, confere uma acrescida presença a esses «sinais». O pincel diz-nos ser sua a autoria instrumental, aquilo que transpôs para a superfície da tela as três distintas zonas que compõem a pintura: a de um horizonte próximo e distante de mar e de céu, um verde batido pelo rebentar das ondas e em que um negro e um azul dão a continuidade de um impulso e o ardor de um movimento; e um azul claro, no qual se movem estranhas volutas. Do mar ergue-se para o céu uma grossa e metálica tubagem. Espécie de funil ou de fumeiro, que várias vezes irrompe em outras pinturas, intervém como uma forma assinctática. Irrompe como um fragmento de uma sensibilidade e de uma imaginação que é um evidente «sinal do pintor», numa alusão aos movimentos futuristas da segunda década do século XX.
Essa metalicidade, tal como o desenho das volutas, pretende criar uma agrura, um elemento ferinte na harmonia ténue ou no que possa coexistir de tranquilo, delicado e constantemente sujeito a transparências. É um imediato traço de dureza que intervém de forma actuante no azul e no verde que povoam e, de certo modo, domesticam a ideia e a visão do mar e os meses de veraneio.
As outras subdivisões do quadro lançam objectos de memórias. Quer o recanto de uma varanda sobre o mar, onde sobre a intensidade de um chão azul - Manuel Vilarinho surpreende sempre a lógica de um olhar com a alteração do colorido do real, optando por inesperados contrastes - se projecta o branco de uma cadeira. Quer uma mesa sobre a areia da praia que directamente se confronta com a presença da moldura de um quadro, de onde parece ter saído. Na areia perde-se, à distância, um alfinete-de-dama, desses que costumam prender as fraldas das crianças. Tem consigo uma idêntica importância à que podemos encontrar no pincel, que parece estar ali somente para nos dizer «eu sou o autor». Enquanto o alfinete nos quererá dizer «eu sou a infância». Perdem-se, sobre a mesa, quotidianos objectos. Todos eles senhores de uma forte singularidade, na medida em que podem conduzir a uma ininterrupta narração. Ainda, uma cadeira de armar espera por alguém que dela momentaneamente se ausentou.
O que me parece ser de sublinhar, desde já, é a força do desempenho de cada um destes banais objectos no contexto do quadro. Eles são um vivo recordar. Partem, sem dúvida, de um construir e de um directo destruir do pintor. São os seus «sinais», mas facilmente se podem tomar nos sinais de cada um de nós que, sob o nosso olhar e interesse, a eles nos vamos ligar numa necessária e imaginada construção. Mar, céu e areia da praia dão razão de existência à varanda da casa, da cadeira e da mesa, mas pertence ao pincel, instrumento do pintor, povoar esse campo de paisagem com a pessoalidade dos seus sinais. E os «sinais do pintor» inscrevem-se no quadro e não representam mais do que isso. O que está dito nesta pintura é que nos encontramos face a face com um organizado grupo de sinais, aptos a serem tomados sinais de qualquer. Como se partissem do labor do pintor, que neles evocou um regresso, para o exercício de um outro olhar retrospectivo, de uma outra memorizada viagem. Mas o que é que de facto aí se encontra? A tela? Os toques do pincel? As manchas coloridas?
Todas essas coisas estão no quadro. São a presença existencial da pintura que se elaborou a partir de uma adequação à tela, à tinta acrílica. Mas sentimos e sabemos que qualquer outra coisa decisiva também lá se encontra e é igualmente sinal do pintor. E que se prolonga de uma forma explosiva no rasgão de energia (colorida) que se expande na horizontalidade de «A Paleta na Praia» (1988) e em «À Deriva» (1988). Sendo nesta pintura, essa energia, o rasgão de três claridades marítimas. Uma, sustém uma ilha com uma árvore; outra, um farol; e uma outra, traz no seu balanceio de onda duas ilhas.
Há na pintura de Manuel Vilarinho uma corrente espontânea ininterrupta que tem passado de obra para obra. Uma cronometria de ritmo que pode assentar na cor: quase sempre a presença de um vermelho poderosíssimo, de um laranja, de um azul, de um negro que se encerram nos seus demarcados limites ou que procuram uma concordância-discordante na assimetria de um tom claro de contraste ou de um enigmático objecto. Ou que pode seguir uma linha de força que se vincula a uma dinâmica que no próprio quadro articula um ritmo plástico e um inusitado movimento (as luminosidades jogam em tudo isto um papel preponderante, o que representa uma forte característica distintiva dos trabalhos de pintores seus contemporâneos).
Olhemos para a tela «À Deriva» e veremos essa determinação de força na árvore que arrasta consigo pelos ares uma extensa corda, na qual se prendem o que suponho serem bóias. Como ainda podemos ver um dos seus objectos mais recorrentes no conjunto destas pinturas, um farol, a luminosidade portanto. Ele oscila sobre o movimento da onda, enquanto envia para a distância a sua teia de raios (que é, no caso de «À Deriva», um cone de luz densa e escura, mais intensa do que a que suportam as zonas negras do quadro). O farol vai não só estabelecer analogias entre outros faróis («Mar de Vermelho», 1988 e «O Ouriço a um Canto», 1990), como entre outros objectos de marcada verticalidade (as chaminés de «Navio-Vigia I» e «II», 1991, de «Largo Frente ao Mar», 1991, de «Linha do Cais», 1991, e de «Praia de Verão», 1997; ou ainda as tubagens carregadas de elementos de «Cama que Baloiça no Tempo», 1987).
Essas linhas de força refugiam-se muitas vezes em zonas do quadro carregadas de uma contenção marcadamente formal e abstracta. Zonas informes de cor que estão quase sempre (senão sempre) presentes e que fazem «viver» uma linha muscular estática que aguarda um esperado momento de acção, enquanto se perde na presença contemplativa de um copo ou de um fruto, ou de marcas que enviam a uma precisa localização: a Ericeira. É o que sucede com o ouriço, de onde derivará o nome da vila marítima; e que se assemelha a uma bola de fogo prestes a explodir, no meio de uma desconstrutiva imagem (um caos de peixes metálicos, pedaço de rede, ventoínha e múltiplas fulgurações geométricas), na pintura «O Ouriço a um Canto». Referência ainda presente numa ermida que invade, com a sua arquitectura branca, a tensão volumétrica de elementos navais, em «Largo Frente ao Mar». (Trata-se da seiscentista Capela de S. Sebastião, de planta hexagonal.)
Linha de força e linha muscular estática (que na pintura «Praia de Verão», 1997, se conjuga e confunde com a imagem de um metálico braço armado) são a forma de conduzir dentro do espaço fechado dos quadros, previamente pensado ao mínimo pormenor, um traço, uma mancha de cor, um projectado desenho. Essa força, esse deslocar energético presta-se às expressões da matéria (a pintar) e procura e encontra uma severidade descritiva que não recua face a nenhum meio de obter uma realidade: aquela, sob a qual se desenvolvem os sinais evocados pelo pintor. Realidade que no corpo destas pinturas é o mar. Não este ou aquele mar, mas o mar que o pintor encontra no aparecer e desaparecer da sua ideada presença de mar.
O mar é neste conjunto de pinturas, portanto, o centro da argumentação que Manuel Vilarinho usou. Surge de uma forma imediata como um coração aglutinador. Veja-se o seu pulsar na tela «Mar de Vermelho». Um rombo vermelho que irrompe, como fogo, da horizontalidade de uma cratera verde e que vai ser sustido na sua impetuosidade por uma altíssima comporta, para que o mar possa continuar a ser o mar tranquilo de um veraneante, na ilusão de peixes e pequenas vagas.
A sua brutal imediatez rompante cobriria de vermelho o espaço entre um céu de cinza e uma indizível areia. Nesse cinzento distribuem-se, a par de um farol, objectos que, à falta de uma acertada designação, parecem chegar até nós carregados de um nível cerebral. Objectos que têm por certo uma carga onírica e que traduzem um difícil significado, lançados que foram, no seu feroz isolamento, por uma intensidade (aparentemente) aleatória. É o que ocorre com essa espécie de bengala coberta de pêlos ou com a lua oval, branca, que se deixa percorrer por uma inusitada nuvem azul. Mas o céu amalgamado de cinzento acaba por tecer um contorno cimeiro, desenhado a tinta preta, que o aproxima, não de um céu de cinza, mas de uma montanha, e na verdade, depois de ultrapassada uma barreira verde levanta-se, entre picos montanhosos, a negrura e o azul de um céu. Na areia da praia (a base do quadro) pequenos despojos, jogos de praia de uma infância, perdidos e não distantes do reflexo vermelho desse «Mar de Vermelho» - que possa eu neste momento invocar o poema «Varech» de António Maria Lisboa.
Os objectos jogam-se como aqueles que a tradição da Natureza Morta nos habituou. Isolados, mesmo quando próximos, mesmo quando entre si se tocam. A descrição desta pintura fi-la, sobretudo, com a intenção de sublinhar alguns aspectos que me parecem muito importantes no construir e no desenvolvimento pictórico da obra de Vilarinho. Já referi a presença de uma espacialidade cerebral aqui presente, a que assiste uma mecânica de antecipação de múltiplos actos do recordar.
A par desse nível cerebral está igualmente presente um nível nervoso e também somático: tudo é corpo dessa explosão líquida que é o mar, desse rio de mar que entre o corpo e a alma (desse mesmo corpo - ou deverei dizer de modo contrário: corpo dessa mesma alma?) é capaz de assumir presenças espectrais, condutoras de uma tensão e de uma linha visualmente palpáveis. E que estimulam e acalmam uma relação dinâmica entre uma cor e outra cor, entre um objecto enigmáico e um outro (um fruto, um copo, um alfinete) que naturalmente se prendem a uma singular ligeireza e a uma viva alegria. Mas logo se abre, a um canto quase perdido na leitura do quadro, uma janela, um sublinhado rectângulo. Pode conter pequenas formas, recortes de geometria povoados de um tom neutro, como sucede em «Mar de Vermelho». Mas também a janela pode abrir para uma imensidade, tal como ocorre em «Quarto no Cais» (1992), em que o rectângulo traz para dentro do quadro (para dentro do «quarto») um cais de porto com dois barcos atracados. Ou como tem lugar em «Enquadramento da Costa» (1992) em que a janela abre para a imensidade de uma paisagem de montanha e nuvens. Ou como ainda sucede em «Visão Marítima» (2000), em que toda a pintura resulta da abertura simultânea de janelas, sendo uma delas a vigia de um barco.
O mar. Ele é aqui o grande enigma. O propulsor de uma entrega criativa e visual que tem consigo, e nos oferece, um halo de pontas de ferro em hora de tempestade ou o reflexo da seda em prolongado instante bonançoso.
Há muito de nocturno nestes acrílicos de Manuel Vilarinho. E, no entanto, as cores são as cores ásperas do verão ou as que pertencem a uma tomada diurna do mar. Quando digo «nocturno», quero dizer que o pintor se retirou para a sua interioridade e de dentro dela organizou a pintura. Os instrumentos dessa mesma pintura podem ter estado, na distância de uma metáfora, sobre as areias da praia, tal como sucede com o pincel de «Sinais do Pintor» ou com a paleta de «A Paleta na Praia». O que acontece mesmo, porém, é um prévio acto memorizado que aproxima esses objectos do teatro do mar.
E a pintura existe, todavia, também fora da sua circunstância de um lugar com o seu infindo campo de influência. A pintura (o quadro que vincula a pintura) é apenas um regresso e corresponde ao silêncio definitivo desses objectos marítimos. Eles provêm não só da experiência do mar do pintor, mas também (e provavelmente com um acento prioritário) da sua intensa relação com a história da arte: se em «O Ouriço a um Canto», surge (a um canto) a arquitectura de um forte, mais do que um envio a uma construção defensiva na Ericeira é uma referência ao intimismo e à soturnidade da pintura de Arnold Böcklin (1827-1901); ou se em «Visão Marítima» surge uma casa sobre uma escarpa, que terá sido vista numa das viagens de barco do pintor, ela acaba por ser bem mais devedora das construções de madeira dos filmes norte-americanos do que a casa que contemplou da amurada; ou em «Vento Lateral» (1993), as nuvens que se recortam numa das aberturas (a única em que não se estabelece uma complexividade relativamente abstractizadora) devem-se, em exclusivo, a uma meditação de Manuel Vilarinho sobre as cinzentas praias de John Constable (1776-1837).
Pertence em parte aos primeiros vanguardismos do século XX o domínio do gosto de Vilarinho. De um período carregado de energia expressiva que decorre entre 1910 e 1925 e que terá por objectivo permanecer anti-impressionista e anti-naturalista. Nomes, como os dos italianos Carrà, Balla ou Russolo, como o dos russos Malevich, Archipenko ou Kandinsky, como o do espanhol Picasso, como
o do romeno Brancusi, como o do austríaco Kokoschka, como os alemães Klee, Gropius, Kirchner ou Schmidt-Rottluff, como os franceses Léger e Braque sempre prioritariamente o têm motivado. Mas são, sobretudo, as obras de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) e de Giorgio de Chirico (1888-1978) que, desde os anos de aprendizagem, exerceram em Vilarinho grande sedução. Ou até as do a-vanguardista mais radical, o norte-americano Edward Hopper (1882-1967) - que pinta o mar onde, de facto, só haveria cimento e betão.
A sua pintura desenvolve-se de um modo muito pessoal desde o início dos anos oitenta. A raíz do trabalho que até este momento tem realizado pode, em linhas muito gerais, dizer-se que assenta (sob um conseguimento original) na criação de estranhas associações de objectos, de geometrias e de planos abstractos que se envolvem e entre si se isolam, para darem lugar a estranhas associações. Estes elementos ligam-se, através de cores fortes, para disporem no espaço do quadro, uma ambiência carregada de mistério e de despojamento. A pintura ora se deixa organizar por uma expansão de sinais ora se apresenta sob a toada melancólica de uma descrição de viajante, mas o carácter de enigma nunca se distancia de um sentido espacial despojado e inquietador. Através de uma constante valorização plástica, o universo pictórico de Manuel Vilarinho percorre planos e distâncias cruamente iluminados, em que sempre, em meu entender, se pode encontrar uma afirmação de Malevich: «O pintor deve saber, até ao presente, tudo o que se passa nos seus quadros e porquê.»
Regressemos ao mar, que nunca deixou de ser a motivação deste conjunto de pinturas. Joseph Conrad, que sob a sua invocação e sob a realidade das suas correntes colocou grande parte da sua obra, refere o seu carácter de inimigo: «Não creio que tenha ainda nascido o homem que, em boa verdade, pudesse afirmar ter alguma vez visto o mar com um ar de juventude, semelhante ao que adquire a terra na primavera.» Creio residir nesta diferente graduação entre uma ideia de juventude que possa ser encontrada, por natural pertença, no mar ou na terra, a imagem de energia oculta que reside nestas pinturas. Guardam consigo uma causalidade de existência que nunca se distancia, quer através da forte escala da cor quer por meio da solidez material de grande parte dos objectos expressos quer, ainda pelas regiões de treva e temeridade que emergem, em momentos de contida abstracção, da inimiga realidade do mar.
Esse saber, mesmo em termos expressos na pintura de Manuel Vilarinho, é aquele que está contido numa posição única e dominante do pensamento moderno (pensemos ainda nos vanguardismos dos primeiros anos do século XX) que, com Nietzsche e Schopenhauer, nos dizem de um modo bem claro que a vida é dor e que esta condição se antepõe a qualquer outra. E da torre do leme dos «Navio-Vigia I» e «II» a visão marítima dos seus capitães poderá, acaso, ser diversa?
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