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PROVISÕES
DO MAR |
É dificil encontrar um pintor na geração
de Manuel Vilarinho em que a dialéctica entre
o gesto de ser tudo e ter uma moldura, ser um quadro,
se exponha de maneira tão radical. Navio-Vigia
I e II protagonizam essa dialéctica
do modo mais excelente. É dificil também
encontrar um pintor português contemporâneo
em que o chamamento do mar seja tão imperativo,
constante e silencioso. Isso quer dizer que, desde
a primeira exposição individual, mas
sobretudo a partir de 1988, há uma ordem
formal (a fragmentação do espaço,
as forças de expansão e contracção
das linhas, o tratamento da luz, o privilégio
concedido a certas cores) que dá voz à
existência, às exigências de
existir: ser viajante no mar, que tem mesmo o fito
de responder a um destino. Por isso encontramos
um jogo perigoso, um arco que se estende, por acabar,
da necessidade à possibilidade, do figurativo
ao informe ou, dito de outro modo, o gosto pela
figura e o chamamento do informe: os seus sinais
secretos: a luz da água e do navio, a vigia
do navio.
Nesta pintura amam-se os paradoxos do equilíbrio,
não só conhece a angústia do
grande dançarino, como sabe que a angústia
é um grande dançarino, o céu
e as suas criaturas, a água e as suas criaturas,
povoam os graus da sua visibilidade: as aves e as
imagens da vertigem que lhe estão associadas,
as nuvens, a sombra das asas, o vento nas fitas
que caem do céu ou acenam das águas,
indicando a profundidade brilhante do abismo, seus
avisos, segredos do mar.
Uma Esfera
no Céu: uma atracção magnética
parece ligar tudo, as forças expansivas do
céu e a sua mecânica, como noutras
telas, a arquitectura e a sua mecânica, a
noite e a sua mecânica de luz (em quase todas
as telas, percebemos a noite que espera, daí
a proxirnidade, no limiar indecifrável nos
detalhes, com o espírito do romantismo) como
em O Ouriço a um Canto, a origem
etimológica a um canto, o ouriço da
Ouriceira, de Oiriceira, de Eiriceira, de Ericeira,
a mecânica do ouriço e os seus desdobramentos,
que são outras tantas vidas desta pintura.
O Estranho Poder do R e Zona de Escala
guardam as sombras de muitas telas de Amadeo, de
algumas de Klee. Vejo um Prado é uma das
obras que mais foi modificada (a par com Navio-Vigia
II, cuja transformação roçou
a metamorfose prodigiosa), tão perto da pittura
metafisica, tão perto desses sonhos que não
desvendam o futuro, pelo contrário, sonhos
que precipitam no presente o há muito visto,
que mostram que se experienciou um mistério
e se deseja contá-lo aos outros.
Primeiro podemos
falar das imagens e das suas palavras: viajante,
vigia, chaminé de barco, gaivotas, abismo,
a casa, a tranquilidade vertiginosa da casa. As
nuvens, as taças, o grande alguidar cósmico
(o fundo do Universo de Zona de Escala),
vislumbres do bosque primitivo (0 Estranho Poder
do R), a esfera, garrafas, jarras, a luz do
farol, o peixe, vestígios de quadros anteriores,
rochas e muros altos, os favos do cais, conchas,
o fumo da chaminé, passagens da habitação
familiar ao desconhecido, que cintilam mais intensamente
nessas zonas de turbulência, por exemplo em
Chão a Oeste e Zona de Escala,
nas quais se revela melhor aquela tensão
assinalada entre a figura e o informe.
Depois podemos
falar das correspondências entre o leve e
o pesado, da descoberta de uma geometria subtil,
verdadeira matemática terrestre, medir os
objectos, os frutos da casa e os seres do longínquo,
estabelecer a sua escala. A arquitectura surge,
então, como a arte do funambulista, arte
de fazer suspender, de fazer voar aquilo que por
natureza se despenha, é assim que os objectos
do céu e as coisas da terra parecem ter a
mesma origem (O Estranho Poder do R, Zona
de Escala, Uma Esfera no Céu).
Em Chão a Oeste, conta-se uma história
de redenção, uma promessa de equilíbrio,
o arquitecto é o dançarino.
Depois podemos
ainda falar da mecânica que nasce dos sonhos,
que torna todas estas paisagens em revelação
do íntimo. Mecânica, como Novalis o
entendeu, é o engenho humano traduzido sob
forma plástica, aqui sob a figura privilegiada
do labirinto e do seu paradoxo: cada paisagem é
um desafio para, tendo esgotado o seu esforço
de encontrar a saída, voltar a entrar. Nas
pinturas mais recentes, Navio-Vigia I e
II, no limite necessrio, fechado, da vigia,
esta mecânica do sonho atinge o seu paroxismo.
Trata-se de
um pintor céptico, inquiridor, insatisfeito.
Por um lado, exorciza o grito de Nietzsche por uma
espécie de obediência: atira-te ao
mar!, que desde Até ao Dançarino
Etrusco se vem ouvindo. À vista das
águas, o pintor desce da sua montada como
nos versos de S. João de Cruz: Y la caballeria
/ A vista de las aguas descendia. O oceano místico,
a imagem visível do profundo que leva a cortar
as amarras. Nas últimas telas, a terra já
se apresenta só por sombrias petrificações,
as paredes terrestres, os muros do cais (Navio-Vigia
II). Por outro, como nos antigos marinheiros
de que Herman Melville fala, nele trabalha a
crença de que navegando com o olhar à
vista da terra não se seria arrastado pelo
eterno alísio sem retorno em direcção
a águas sem limites. |
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Maria Filomena
Molder |
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