Eu diria que há momentos aqui como aquele em que, de olhos no chão e por causa do brilho do sol que ali reluz fora do lugar, vislumbramos na terra o vidro quebrado do fundo de uma garrafa, como um espelho através do qual o mundo se reflete e expõe em mutação, anguloso e multifacetado. Recordaria talvez então aquela lente estilhaçada no rosto da enfermeira na escadaria de Odessa, primeiro no Potemkin de Eisenstein, depois nos gritos de Francis Bacon ou ainda na Stabat Mater de Jorge Pinheiro. Em qualquer dos casos, doravante seria inevitável constatar uma fragmentação do espaço como que a emergir do cubismo ou até de uma visão cinemática na linha da que Vertov elaborou, mas o que acabaria por sobressair na evocação da pintura de Manuel Vilarinho seria, principalmente, a tranquilidade depois de um desastre inevitável a pairar num éter denso, desigual na temperatura, onírico e surreal: um ar com uma matéria marítima a oscilar entre os sopros atlântico e mediterrânico, sem coordenadas mapeáveis ao certo, como o próprio espaço onde as memórias habitam, imprevisíveis no cheiro, textura e intensidade, informes como nuvens ao vento.
A haver assim uma tragédia instalada e a crer em Sophia, poder-se-ia pensar num mundo estilhaçado "onde a aliança foi quebrada" , um reino dividido como o "corpo de Orpheu dilacerado pelas fúrias". Contudo, também ali aconteceria o "reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão. (...) Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa."
Tal como essa busca do ser inteiro no poema para a escritora, a pintura de Manuel Vilarinho é, pois, uma solução e cura possível, pois "o reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece."
Assim, na tessitura de palimpsesto (ou num tecido/texto que Barthes permite expandir à pintura) podem destacar-se nos quadros desta exposição, num breve inventário iconográfico, linhas do horizonte instáveis, céus azuis e cinza, referências clássicas de jardins e templos, bustos e elmos guerreiros, alvos futuristas, fragmentos de arquitetura modernista, restos de esculturas com rostos doridos ou punitivos, ânforas quebradas e remendadas, flores carnais e árvores esquálidas, quadros dentro de quadros, grutas, escadas, pinças, fios moventes. São, por assim dizer, parte dos versos, as coisas por detrás das rimas.
Em profunda coerência e solidez com um percurso de mais de três décadas, a pintura deste artista faz-se de pedaços de história pessoal, sinais de afectos e, certamente, perdas, dialogando entre si com outros passos das deambulações de um passeante atento, o próprio autor - que, como uma possível rapariga europeia por vezes a piscar-nos o olho em pose de pin-up saída de postais ou capas de discos (seja ela Helena, Maria ou Sophia), - caminha por poemas, ficções, filmes, ecos diversos para além das imagens que refulgem, como já se aludiu, no quotidiano da vida, no fundo dos espelhos, na própria pintura, na cultura que vive conosco.
Logo, trata-se de uma pintura que não receia nem a sua especificidade, nem a sua impureza ou descentramento; que se distancia, naturalmente crítica, da retórica autoritária que separa os meios linguísticos e as épocas remotas ou do presente. Pelo contrário, quanto mais porosa conceptualmente, mais livre fica para se tornar um meio diáfano que se apaga para dar lugar ao seu próprio mundo reflexivo, momentaneamente, logo de seguida readquirindo presença física o lado material, a sua certeza como forma, apenas fixa para declarar a sua instabilidade: em resumo, o seu corpo traiçoeiro.
Aí, de resto, habita a arqueologia do próprio pensar e fazer pictórico, desde as imagens que nascem e mudam entre as cores misturadas na paleta e os traços e manchas na tela ou no papel: umas vezes fluídas e decisivas, outras vezes hesitantes na forma, na resistência da tinta que seca, nas sobreposições onde o tempo do pensamento se estratifica desde o fundo do suporte para as camadas superiores, rompendo com os limites do quadro e uma hipotética geometria interna. Tudo isso faz parte do seu jogo vivo, da dinâmica física e mental que pode fazer a figura aparecer como um nódulo dentro de uma ostra, gradualmente afeiçoado pelas dinâmicas desse corpo que se segrega e sedimenta na matéria da pérola em gestação.
Depois, à presença das coisas pintadas sucede-se de novo a fibrilação que as torna acontecimentos no fluxo associativo, tão depressa direto como densamente metafórico, numa alternância infindável. Aliás, a imagem pintada, operativa nos intervalos e na alteridade do rigor científico, contém no seu carácter metamórfico um enorme potencial de provocação da liberdade associativa e, desse modo, de evocação, sendo por essa sua função mnemónica que (como bem refere Alison Gingeras2) a pintura persiste com vitalidade e triunfa no seio da arte contemporânea.
De olhos no chão, eu diria que há momentos como aquele em que, por causa do brilho do sol que ali reluz fora do lugar, vislumbramos na terra um vidro quebrado que afinal é um espelho que afinal é uma pintura que, afinal, é um poema.
1 Sophia de Mello Breyner Andresen, Arte Poética I, 1962, bem como os excertos seguintes entre aspas que não estiverem numerados.
2 Alison M. Gingeras. The Mnemonic Function of the Painted Image. Em The Triumph of Painting.
http://www.saatchigallery.com/current/essays.htm [Acesso 2013-10-04]
|