Vértebras despedaçadas
Como se pode verificar foi o poeta Mandelstam a falar das vértebras despedaçadas da sua era1, duas centúrias (ele nasceu em Varsóvia no ano de 1891 e morreu num campo de prisioneiros políticos na Sibéria, em 1938). Há quem tenha tido dúvidas e elaborado uma engenhosa exegese sobre o carácter problemático da identidade desses séculos, não será o caso aqui.
Vou dizer o que me parece que Mandelstam diz, sabendo que poderá tudo passar ao lado (que eu nunca o li em russo e ele abominava traduções de poesia).
Vértebras despedaçadas tem de imediato a ver com a morte, mas dito assim é pouco, tem a ver com a violência da vida, a sua ferocidade, tem a ver com ferimentos dolorosíssimos e que mutilam para sempre, ferida mortal sobre a qual se verte, se verte a indiferença.
Quem ousará soldar com sangue, que jorra da garganta das coisas, olhando nos olhos a era, a fera, soldar com esse sangue a espinha quebrada?
A coluna vertebral é uma das figuras da necessidade: Todo o ser no agarrar da vida, / carrega com a espinha do dorso e, portanto, nela está prometido todo o perigo de viver. Que onda é esta que balança ao ritmo da humana desdita? Parece uma ameaça, mas não, deve ser antes excesso de amor, de júbilo, de jogo puro: brinca / abrupta e invisível a onda. Só que faz parte do vivo ser ferido, à criança alguém fere o tenro osso do crânio. A vida nascitura é de novo imolada, essa é a Idade da Terra na sua infância, ovelha sacrificial, que há-de olhar para trás, como animal outrora flexível / para as pegadas dos próprios pés.
É que imolado um, logo se agarra um outro, e para celebrar a novidade há que atar, com a flauta, os dias / p’los enodoados cotovelos. Partes nodosas: onde o um e o dois se descobrem no três: dobradiças vivas, cotovelos ou joelhos (na tradução de Haroldo de Campos). «Junta essas dobradiças», ou nas palavras do poeta «ata os dias» injunção que tenta descrever a tarefa do poeta.
Se soar a flauta, instrumento do deus criança, do adolescente sem sexo definido, o deus da vinha e da hera, cujos movimentos se assemelham aos desenhos meândricos da água, o deus dos muitos animais, Dioniso, o mundo será liberto. Ele é para Mandelstam, como para os Gregos, e para Hölderlin e Nietzsche, aquele que liberta. Se soar a flauta, o mundo renasce, Dioniso, Dioniso, mas a flauta tem a sua fonte na dor, extravasa angústia! Aqui, a onda é a do tempo que oscila, batida pelo vento da era. A víbora é o parasita que respira o ouro que não poderá reconhecer nem roubar, parasita que não conhece a libertação da flauta nem o rebentar da vide.
Mandelstam é um dos nomes que aparece inscrito (ao lado de Akhmatova) numa das telas da exposição na Monumental, em 2010 (A leitora incomunicável, 2007-2009, acrílico e pastel sobre tela). O poeta vê as vértebras despedaçadas da era, a ferida mortal no apex da criança, duas centúrias, a víbora respira ao compasso de ouro do / século, mas não é contemporâneo da amálgama de embriaguez e dor, substância poética: Não sou contemporâneo de ninguém, assim começa Mandelstam um outro poema da mesma época.
Esta é a abertura para o que está em causa desde há alguns anos na obra de Manuel Vilarinho, que se mantém e renova nesta nova exposição, e é assinalado na entrevista pelas suas palavras. Statua
São reunidas em Statua duas séries de desenhos (ou de técnica mista sobre papel) e duas de pintura. Há uma obra isolada, um desenho, Estátua em Exterior, que é, por assim dizer, o cadinho que liga todas as séries em que actuam como personagens, a saber, a alteração de escala, o vento que desarruma o jardim e desencadeia as memórias, as flores tocadas pela imposição de uma forma a que foi retirada a função (mola de metal preto, para prender papéis, quase caída em desuso) e se tornou um misterioso objecto maquínico da família de três outros, um que acompanha, sombrio e fértil, todas as estátuas, outro que faz endoidecer um dos jardins, e o terceiro, o elmo abandonado ao vento em Na Floresta Negra #2 2 . E a cinza que serve de fundo ao torso é ainda uma exalação do mar grego.
Das duas séries de desenhos, uma, No Jardim de Família, vem de 2006 / 2007, a outra, A Memória das Estátuas, foi realizada já em 2014. Com as telas também se destaca uma diferença temporal, as telas de Greek Isle in Autumn (for Byron) têm a data de 2009, ao passo que Na Floresta Negra, bem como Estátua em Exterior pertencem ao ano corrente.
Platão conta, lembra-nos Robert Klein, que os Antigos tinham agrilhoado as estátuas de Dédalo, por medo que elas se fossem embora. O que nada tem a ver com naturalismo – serem tão parecidas com qualquer coisa que se confundissem com ela –, mas com o silêncio e a poder da imobilidade que as fazia erguer, levantar, firmes e intocáveis, elas que, pertencendo a uma vastidão que as chamava, resistiam a todos os olhares de proximidade e posse, e mantinham-se longínquas, preparando-se para partir.
The isles of Greece! the isles of Greece
Em Cephalonia, Byron encontrou um belo grego de 15 anos por quem se apaixonou perdidamente, Loukas Chalandritsanos, e que, beneficiando de todos os favores, o acompanhou até Missolonghi ou Messalonghi. Parece ter sido um «idiota desprezível» que não percebia nada do que se passava à sua volta. A sua indiferença causou grande sofrimento a Byron, que dá conta desse amor não correspondido num poema. Há quem o considere um dos mais importantes factores que concorreram para a depressão que levou Byron à morte.
Para Greek Isle in Autumn (for Byron) #1, 2 e 3, Manuel Vilarinho concentrou na cromática as outras características gregas do mar, a saber, por um lado, a animalidade indomável, e, por outro, o divino abismo e a estranheza à terra («o mar nunca vindimado» de Ulisses). Na Grécia arcaica não se vê o mar brilhar, o mar de Ulisses não cintila. Estão ausentes as cores marinhas nossas conhecidas: o verde radioso, o azul vibrante (cf. Aurora, onde Nietzsche diz que os Gregos não viam nem o verde nem o azul). O mar da Odisseia tem a cor de vinho escuro, violeta, cor de púrpura, cor de cinza, soberano das sombras. Nas ilhas votadas a Byron observa-se a pertença do poeta a esse mar.
Escrevendo à sua irmã Augusta em 9 de Setembro de 1811, Byron confessa que tinha sido a Grécia a torná-lo poeta.
Inscrições e passeios
No Catálogo da Monumental, partilhando a mesma página uma fotografia de família – parte de um conjunto sobriamente identificado no final –, vemos uma outra em que vários livros e catálogos abertos de exposições do artista se misturam numa desarrumação benévola. Reconhecem-se alguns títulos: O Dom de Nabokov, O Salteador e Passeio e Outras Histórias (este semi-oculto) de Walser. É como se Manuel Vilarinho nos desse a ver desconjuntada e sem legenda, e por isso tão prometida à boa rememoração, a intimidade entre aquilo que faz e os livros que lê. Verdadeiro manancial para a compreensão de Statua. Alguns exemplos. Na tradução portuguesa de O Dom de Nabokov, a editora Assírio & Alvim fez duas capas diferentes de estudos de Nabokov sobre borboletas, e Manuel Vilarinho inspira-se nelas num dos desenhos de No Jardim de Família #4. Incerta é a etimologia da palavra borboleta em português, já de lepidóptero não é o caso, vem de lepis-lépidos (escama) + pteron (asa), o que não pode deixar de agarrar a imaginação. Aquela incerteza, porém, é o grão de sal que tempera a desproporção entre o interesse pictórico de Manuel Vilarinho pelas asas das borboletas e ausência de qualquer propósito de as caçar, estudar e coleccionar.
Também o convite para a presente exposição sofreu os efeitos daquela fotografia, pois foi escolhida como epígrafe, para acompanhar uma das ilhas dedicadas a Byron, uma citação de O Salteador de Robert Walser: «Depois de tomado o chá, visitou-se o parque e, durante o passeio, falou-se de ilhas, de poetas, etc.» Mais Kleist e Hölderlin do que Byron muito seguramente, mas aceitou-se esta oferta do acaso.
Regressemos ao mesmo Catálogo, na página ao lado da fotografia referida, uma reprodução de O Último Passeio de Robert Walser, onde a inscrição Der Spaziergang, sinuosa, como o passeio, e vermelha, como o fio condutor em língua alemã (der rote Faden, o goethiano fio vermelho que corre pelas nossas vidas), nos dá a ver o caminho que um homem está a fazer e que não vai dar a lugar nenhum, o último passeio. No canto esquerdo, uma outra inscrição, esta ilegível, uns garatujos dos escritos últimos de Walser a lápis, Bleistifschriften, decifrados há pouco tempo. Debaixo deles e compondo um todo com eles, uma figura geométrica constante nas pinturas e desenhos de Statua, uma espécie de transferidor de 360º, que às vezes se transforma em alvo, outras se aproxima das asas das borboletas, e que se projecta noutras coisas que vêm parar ao atelier, como seja um convite (para uma exposição) com a mesma forma circular, mas cujo centro é um quadrado, quase uma janela secreta. Figura sombria (e fértil) que nos desenhos A Memória das Estátuas aparece provida de forças xamânicas e demoníacas, ao mesmo tempo, protectora e inquietante.
Mas ainda se prolonga este Catálogo em Statua. Se folhearmos para trás deparamos com uma das tais fotografias de família, e sob ela, seguindo o procedimento gráfico anterior, uma citação bem-humorada e mordaz de Nabokov, em entrevista na Time, sobre viagens, borboletas e condução de automóveis. É uma mulher muito elegante, elevando-se no lado esquerdo de uma paisagem deslumbrante, talvez numa colina, pois em pano de fundo, em baixo, se adivinha um casario distante. Ela sorri. Nos quatro desenhos da série No Jardim de Família, 2006-2007, aparecem colagens de fotocópias desta fotografia. E de repente, pensamos. Mas não, estamos a inverter a cronologia, fomos enganados pela sequência escolhida, quer dizer, a reprodução da fotografia no Catálogo de 2011 é posterior à realização dos desenhos. E no entanto, não é nada disso, a cronologia foi estilhaçada, o que importa é o artista ter transformado sob o nosso olhar o antes no depois, quer dizer, agora lemos a fotografia à luz dos desenhos, ao mesmo tempo que ela se insinuava já ainda antes de os vermos.
As obras de Manuel Vilarinho esperam pelo seu dia.
O pássaro que atravessa o tempo da alma
É de um texto de Paul Valery, «Autres Rhumbs», que vem este pássaro, cuja travessia do tempo da alma é preenchida com tarefas, sem as quais o pensamento seria presa de «muita potência de perdição», forças de atracção que o chamam para os seus abismos (ele enumera a lista: «o absurdo, o simplório, o fantástico, o arbitrário, o vago e o confuso, o demasiado belo e o demasiado triste»). Para se manter, esse pássaro terá de compor e opor umas às outras essas mesmas forças. Num só golpe ele tem de abrir caminho, dispersar, recombinar, desencadear uma guerra, escolher e prender.
Talvez este pássaro seja um outro nome para «o acto de retenção», tema próprio da fenomenologia husserliana, que Nabokov reinscreveu no universo da arte:
O acto de retenção é o acto de arte, selecção artística, de mistura artística, de recombinação artística de acontecimentos reais. O mau memorialista retoca o seu passado e o resultado é uma fotografia em tons de azul ou cor-de-rosa tirada por um estranho para consolação duma perda sentimental. O bom memorialista, por outro lado, faz o melhor que pode para preservar a última verdade do pormenor. Uma das maneiras de realizar o seu propósito é encontrar o lugar exacto na sua tela para colocar a mancha certa de cor recordadas.
Opiniões Fortes, 219.
Não tenho a certeza da justeza da palavra memorialista, e também me parece que os acontecimentos reais começam logo a tingir-se (desde que o artista dê por eles), de modo que nunca mais serão reais, de modo que nunca foram reais. Como quer que seja, as palavras de Nabokov dão muito que pensar e vão directas ao alvo. Na mesma obra e página, vêmo-lo estabelecer a diferença entre o tempo a que chama «aplicado», «as ilusões mensuráveis do tempo», equivalente não só ao inimigo perseguidor de Baudelaire, ao deus que devora os seus filhos, mas também à redução do tempo ao espaço, obra de físicos e historiadores, e o tempo como «medium fluido», duração pura, continuum, imóvel (à maneira de Kant, o tempo não se move, são os homens que se movem no tempo), por isso, sendo o ritmo parente do tempo não é seu igual. Eis a percepção do tempo «como um ténue vazio entre duas batidas rítmicas, o silêncio estreito e sem fundo entre as batidas, não as próprias batidas, que apenas cercam/circundam (encompasse) o Tempo. Neste sentido, a vida humana não é um coração que pulsa, mas a pulsação em falso».
Parece incompreensível de tão assustador! pois o continuum sem articulações, sem joelhos nem cotovelos, sem dias que se possam atar, não é para nós. Não é essa a Eternidade de que fala Nietzsche nos fragmentos dos ditirambos dionisíacos. Que «a vida humana não é um coração que pulsa, mas a pulsação em falso» significa que o nosso coração – seja o do mau seja o do bom memorialista – não afecta nem mede esse continuum sem costuras, insusceptível daquelas divisões que são fruto do ouvido, da batida do pulso, dos movimentos de atender ao que está diante e ao que está atrás de nós, isto é, o passado, o presente e o futuro, articulações resistentes à cronologia e que engendram um continuum sentimental e criativo. Este é o nosso tempo, talvez esse a que Nabokov chama puro, perceptivo, tangível. E continua ele:
O passado faz também parte do tecido, parte do presente, mas parece algo desfocado. O passado é uma constante acumulação de imagens, mas o nosso cérebro não é o órgão ideal para uma retrospecção constante e o melhor que podemos fazer é apanhar e tentar reter as manchas de luz do arco-íris que perpassam pela memória.
Aqui entra o pássaro de Valéry. Por outro lado, há quem considere que desfocado é o presente e que o passado é a fonte de todos os nascidos, e que sem inverter a pegada do tempo nada feito, pois é da profundidade do passado que esguicha a nossa vida presente. Giorgio Colli dixit.
Reencontrar a imagem de uma pessoa há muito desaparecida (o que é muito?) é uma espécie de sonho que as mãos fazem ao abrir um velho álbum de fotografias, semelhante a um cataclismo que abala as entranhas da Terra. Não foi só a morta, já sem nome, que se levantou, ela não vem assombrar aquele que está vivo, vem, antes, marcar aquele lugar em que ele sem dar por isso começou a escavar o que estava enterrado (as imagens são benjaminianas) e caiu em si. A colagem é a sua prova.
(o mistério insondável da cultura etrusca vem dos seus poetas não poderem ser lidos, porque a língua etrusca ainda não foi decifrada. Este passado não está embaciado, estremece de expectativa. Leia-se o poema de Richard Wilbur, To the Etruscan Poets).
O efeito-atelier ou as máquinas de produzir vento (tempo)
Distância: é o nome que se dá ao intervalo que nos separa de uma coisa que não podemos tocar. Coube a Hermann Melville comunicar o segredo da distância aparente de uma coisa que se vê ao longe e se sonha, sem se sair do lugar, no caso dele, uma varanda, chamemos-lhe atelier. Já quanto aos habitantes do atelier, Walser encontrou a melhor fórmula: «Lutadores-consigo-próprios», escreve ele nas tais folhas inéditas, escritas a lápis. Esse corpo-a-corpo não tem manual de instruções, em cada caso há que surpreender quem venceu e quem foi vencido. O exercício catártico de Manuel Vilarinho, o acto de deitar fora, é um dos seus ingredientes, o que não tem a ver com a perdição de «le chef-d’oeuvre inconnu», antes com a Face lavée d’oubli de Sain-John Perse.
Ao atelier, esse lugar de adivinhação e noite, de contenção e excesso, vai parar tudo aquilo que as mãos e os olhos se encarregarão de transportar e transmutar, por exemplo, o guarda-revistas (muito anos sessenta) de fundo preto e bolas brancas num dos desenhos dos jardins, ou ainda os livros de Chirico, pintor muito amado e admirado por Manuel Vilarinho (para muitos, muitos, um desconhecido). Vejam-se o Cavalier con beretto rosso e manto azzuro de 1939, e a Natureza-morta com elmo de 1953, e a seguir olhe-se para Na Floresta Negra #2: o esforço de domar forças insanas quase frenéticas no caso do cavaleiro, (pensamos em Munch) é interrompido e paradoxalmente intensificado pelo elmo abandonado ao vento. Nas suas pinceladas vibrantes ressoa outra obra de Chirico, esta vista há cinco anos em Roma, A Luta dos Centauros (cerca de 1909), que muito o impressionou.
No capítulo dedicado ao tempo nas Confissões Santo Agostinho fala dele como uma vis, energia, força, como a vis centrifuga ou a vis centripeta. Assim o tempo, assim o vento, ambos forças geradoras de antinomias que nenhuma dialéctica pode vencer: o vento como ameaça, «o vento famélico» de Qohélet, o vento inclemente que arrasta e desfigura, e o vento musical, o vento que faz soar a harpa que nenhuma mão dedilha, harpa eólica que conhece na máquina de vento em No Jardim de Família #1 uma simétrica perversa.
Isto tem a ver com esta exposição: fechar círculos que não se fecham (o transferidor de 360º a rondar), a espiral a fazer o seu caminho tão inelutável como imprevisível, a fundura do passado a irromper e a rasgar o tecido friável da vida empalidecida a que se chama presente. A espiral é o que parece fazer o vento: enroscamentos de poeira que esvoaçam e prendem folhas dispersas e sobem pelas estátuas. Há uma espécie de espiral a engendrar-se e a perder--se no fundo destas obras (e podemos ir na sua peugada nas duas exposições anteriores), a sua suprema aparição dá-se uma vez mais na Floresta Negra #2.
O artista está nesta encruzilhada e não tem a intenção de se decidir a abandoná-la. Parecendo contradizer-se, os três destinos são comunicantes: por um lado, procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado e para isso tem de escavar ou inventar máquinas de vento; por outro, deixa que as memórias venham ter com ele (de outro modo perde o seu tempo), se elas vierem, serão sementes para desenhos e pinturas; finalmente, esquecer, esquecer, «atira-te ao mar», aprende a perder, perde-te, esquece tudo o que te impedir de te tornares um espírito livre 3.
Nas suas obras age aquilo que é um dos elementos que providenciam à pintura sua obscuridade (conceito de Robert Klein), que alguns julgaram ter expulso para sempre da pintura, a saber, o uso do modelo, mas como um moderno, usando a amálgama, a sobreposição estudada de planos, o despojamento, os elementos geométricos e mecânicos, uma certa forma de construtivismo (o seu singular vorticismo), prestando contas pelo dia contra o dia.
Manuel Vilarinho procura um tesouro que foi dele, ele próprio o enterrou, mas não sabia que o estava a enterrar, agora com a ajuda do vento vai tentar desenterrá-lo, e cai sobre o tesouro como um ladrão implacável e extenuado, o vento arrasta-o, parece que choveu. Voltemos à fotografia da mulher: já ninguém se lembra como ela se chamava, que idade tinha, e lá vem ela ocupar o lugar exacto, desprevenida. Foi arrancada do contexto pelo violador de túmulos, o salteador, mas só ele poderá revelar-se o guardião do seu regresso à terra dos vivos. Fazer parte de um continuum, coisa que nunca se poderá analisar, é um sentimento, tentar deixar ver os pontos nodais, as articulações, e os pontos de energia, de ebulição, de oxidação, de combustão, experiências químicas e anímicas: eis as provisões do atelier.
1 Haroldo de Campos traduz assim os primeiros versos: Minha era, minha fera, quem ousa / Olhando nos teus olhos, com sangue / Colar a coluna das tuas vértebras?
2 Outro exemplos, mencionados por Manuel Vilarinho na entrevista: «correias (de borracha, de couro ou de outros materiais moldáveis, não muito rígidos)».
3 Agradece-se, respectivamente, a Walter Benjamin, Louise Bourgeois e Nietzsche.
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