Entrevista a Manuel Vilarinho, realizada em 28 de Agosto de 2014. Omitiram-se todas as perguntas e juntaram-se outras palavras do pintor enviadas por carta ou por correio electrónico, anteriores àquela data. Os títulos foram acrescentados e a ordenação das respostas é propositada. Nenhum de nós é praticante da religião naturalista.
Estudos, não
Se faço estudos preparatórios? Não. De vez em quando faço esboços. Mas eles transformam-se em obras.
Embora o estudo possa ser conceptual. Por exemplo, O Último Passeio de Robert Walser foi iniciado em desenho por volta de 2006 e realizada a pintura posteriormente, mas não se trata de um estudo no sentido de um esboço preliminar.
Papel do desenho: autonomia e propulsão, é um processo que prepara uma outra obra, pensa-se já através do desenho, e essa é também a sua autonomia. Por outro lado, a pintura não tem de ser formalmente equivalente / igual.
Falsa pista
Não, não tenho nada que ver com a paixão pelas borboletas de Nabokov.
Viagens
Companheiros de viagem, as obras que estou a ler e a ouvir naqueles momentos, por aqueles dias em que estou a pintar. Quase sempre ouço música quando trabalho, ao acaso ou propositadamente, depende. Às vezes estou dias e dias a ouvir as mesmas, outras vezes mudo. Qualquer género de música: jazz, clássica, rock. Os livros dos pintores entram e saem.
Geometria e comoção
O que me interessa também no meu trabalho é a geometria como corrector do sensível, para combater alguns dos elementos cheios de emoção, corrigindo o excesso de emotividade.
A geometria aparece em momentos extremados da realização do desenho ou da pintura: umas vezes no fim, outras no inicio. Uma das ilhas de Byron (a #3) começou por ser muito geométrica e depois, a pouco e pouco, fui desmanchando a rectidão da geometria. Numa das pinturas, a do cavaleiro1 , a geometria, a volumetria no elmo é que corrige a comoção.
Princípio de método
Destruo incessantemente obras desde o início. Quando dei aulas, aconselhava os alunos a deitar coisas fora. É fundamental deitar fora, e saber o que deitar fora.
As ilhas de Byron. A capacidade de destruir, em trabalhos que nos podem condicionar, influenciar pela vulgaridade ou mediocridade é mesmo o mais importante. Hoje sinto algum mal-estar por, em determinados momentos, não ter tido a lucidez e a audácia para destruir algumas obras minhas que andam por aí. É uma forma de disciplina. Sempre que destruí obras que estava a fazer, nunca sofri qualquer efeito sentimental.
Aquilo que mais ninguém sabe
Para as estátuas nos desenhos, a sua origem está no folhear compêndios de escultura, baseei-me nas fotografias. Uma das estátuas é de origem etrusca. O que é um regresso imprevisto à minha primeira exposição individual, de 1985, Até ao dançarino etrusco. Uma mesma pintura, séc. VI a. C., um dançarino num túmulo, a cor avermelhada que era própria da representação dos homens. O mistério da cultura etrusca.
Na série A Memória das Estátuas a escolha de papel Fabriano de cor Terra de Siena obedeceu ao objectivo de criar desenhos de estátuas em que não fosse necessário entrar com muitos efeitos de claro-escuro, através da mancha e do traço, mas que ao mesmo tempo adquirissem um aspecto corpóreo, volumétrico, e pensei também numa cor que, não sendo branco, aguentasse bem a cor preta que sabia ir utilizar em todas as formas geométricas neles presentes.
Com a forma volumétrica, com vários cinzentos, que aparece no Jardim de Família # 1, pretendi que tivesse um aspecto maquinal, como se de uma máquina de fabricar vento, ou tempo, se tratasse, ao mesmo tempo que queria uma componente visual que cortasse a delicadeza, quase homenagem a um certo Rococó, presente nas flores.
Algumas linhas a preto, bem grossas, presentes na pintura Na Floresta Negra #1 e também na forma maquinal do desenho de que falei atrás, pretendi que invocassem algumas correias (de borracha, de couro ou de outros materiais moldáveis, não muito rígidos), que vi há muito tempo nalgumas máquinas. No caso da pintura, essas correias aparecem já cortadas.
Vida própria
Os Byron (de 2009) tinham de esperar pelo momento propício, ainda não estavam preparados para serem vistos. Apesar da proximidade do contexto histórico-cultural, eles têm uma vida alheia aos Shelley ou aos Keats (exposição Pinturas Recentes, 2011).
Os segredos da escala
Só muito recentemente comecei a interessar-me por Fantin-Latour. Surpreendi o segredo da mudança de uma natureza morta – Natureza-morta com torso e flores, 1874 – para uma paisagem: o que era um torso enquadrado numa natureza morta em interior é agora uma estátua numa paisagem. Com a alteração de escala muito se transforma, por exemplo, o género na pintura2.
O jardim original
As flores vêm de qualquer coisa de que não me lembro de alguma vez me ter influenciado ou ter dado importância: Boucher, Watteau e Fragonard. Reminiscências do jardim francês, e talvez tenha sido isso que as despertou. Elas também vêm de uma rememoração, particularmente do jardim da quinta dos meus avós paternos3.
Duas forças
Na série No Jardim de Família preocupei-me em aliar à passagem do tempo, a passagem do vento, nos quatro desenhos.
Opiniões fortes4
Em tudo isto há a convicção de que aquilo que não está perdido vai ser perdido. O vento. E por isso falo de vento.
Na última década comecei a ter a noção aguda de ter sido sempre um homem do passado, de ter vivido noutra época, talvez no início do séc. XX – comigo não poderão contar para futuro nenhum.
O poder das ruínas
As estátuas (romanas, etruscas, neo-clássicas) ou o que resta delas, são portadoras de uma sabedoria imensa, que é a memória que elas têm de tudo o que passou por elas. Em muitas delas não há só um olhar compreensivo, mas um olhar de estupefacção. Nas estátuas há algo que foi deixado pelo seu autor e que é claramente vida.
Ensinamentos
Repare nos vestígios do cavaleiro... estão presos à árvore5.
Já leu O Salteador do Robert Walser?
Títulos
Holzwege6 é menos o título de uma obra de Heidegger, e mais aquilo que enlaça todas as obras desta exposição: Holzwege, os caminhos da floresta, todos diferentes entre si e todos se assemelham, não servem para se sair da floresta: «Cada um faz o seu, a floresta é a mesma». Também diz respeito ao mutismo/mistério das obras que caminham lado a lado (e não só as que se intitulam Na Floresta Negra #1 e #2).
O título Statua vem mesmo a calhar, é aquele a que as obras mais se adequam.
Procurei por mim próprio
Lembra-se de um dos poemas de Nietzsche, «a divina arte de esquecer»?
Faz parte dos Ditirambos Dionisíacos (Canções de Zaratustra): perder palavras e não ficar a remoer: Homem, lança-te ao mar! Era citado na minha primeira exposição. O trabalho não é só o contacto com o público, é uma coisa do artista com ele próprio.
Arte e Cultura
Há uma questão que anda por trás disto tudo, que é a questão da importância que tem para mim a imensa Cultura Europeia e a aversão que sinto pela conversa que sobrestima o multiculturalismo.
Comunidades
A entrevista com palavras que se perdem, parece-me bem. Porque é que não deveriam ter esse destino, quando tudo de que é feita a vida tem essa característica. E, mais tarde, o silêncio do esquecimento total... E o contrário, não seria realmente falar de outras coisas, que não palavras, e que não do homem? Parece-me que o tempo me está a mostrar demais esta sua face.
1 Manuel Vilarinho refere-se a Na Floresta Negra #2.
2 Manuel Vilarinho refere-se a Estátua em Exterior e Na Floresta Negra #1.
3 Manuel Vilarinho refere-se à série No Jardim de Família.
4 Título de uma obra de Nabokov (Assírio & Alvim, 2005), muito lida por Manuel Vilarinho.
5 Manuel Vilarinho refere-se a Na Floresta Negra #2.
6 Palavra inscrita nas pinturas Na Floresta Negra #1 e #2.
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