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A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA

      Há muito que Manuel Vilarinho vem investigando a pintura (e o desenho) sob o signo da paisagem. Se nos primeiros momentos tomou o mar como referente, cedo se centrou no tema da viagem por terra. Nos últimos anos, a esse centramento acrescentou-se um dado extra: a viagem realizada através da palavra escrita, de autores que o pintor admira e que passaram a informar e a alimentar a sua memória e a sua visão.
Apesar deste novo dado, não podemos ainda encontrar fáceis fios de Ariadne na obra deste artista. Entre o fragmento (leia-se também o apontamento, o carácter de breve nota) e a relação/conjugação de linhas e manchas de cor, que se coordenam para a criação da composição, o que encontramos como resultado é uma ficção construída sobre as fracções que, fenomenologicamente, surgem e permanecem na memória. De tão pessoais, de intransmissíveis na sua origem, tornam-se puros exercícios plásticos. É isso e apenas isso que aqui conseguimos captar. O fascínio narrativo através da prática da pintura.
Mas antes de nos debruçarmos sobre isso, comecemos por um aspecto aparentemente apenas técnico. Clássico nos suportes, usando apenas — até agora! — a tela e o papel, há contudo pressupostos plásticos diferenciadores que determinam a escolha de cada um. Ou, nas palavras do próprio artista, “o pensamento plástico que gera ambas as experiências é diverso”. Formalmente, podemos dizer que há três aspectos clarificadores: a cor, a preferência pelo traço ou pela mancha e a orientação dos suportes. No primeiro caso, é notório que à paleta mais restrita no desenho (negros, cinzas, brancos e ocres) a pintura contrapõe uma mais vasta gama cromática. No segundo, enquanto no desenho o traço — mais veloz e experimental — oscila entre linhas finas, nervosas e rápidas, na pintura as linhas largas metamorfoseiam-se em mancha e, quando se mantêm próximas da linearidade, ostentam sempre a morosidade de um trabalho mais aturado. No terceiro caso, e por ventura evocando um lado introspectivo mais notório, quase textual, o desenho apresenta invariavelmente uma escolha da verticalidade na composição, enquanto a pintura surge preferencialmente em composições horizontais, que melhor servem a representação da paisagem em exercício de extensão, no claro jogo das suas investigações sobre o espaço. A referência ao desenho parece-nos relevante — embora, no conjunto de obras escolhido para esta exposição, não surja qualquer exercício sobre papel — uma vez que algumas das características que com maior frequência nele surgem, pontuam alguns dos presentes quadros.
Se a cor não é aqui reduzida à paleta que o autor prefere para o desenho, o traço fino e quase rápido, o apontamento que cita a expressão mais imediata característica desse registo surgem em várias das telas presentes. Como também é, em diversos casos, alterada a usual lógica de formato horizontal para o formato vertical (ou para o “ambíguo” formato quadrado, espécie de cruzamento entre os registos “retrato” e “paisagem”). Não deixa de ser curioso que a alteração dessa “regra” interna de Manuel Vilarinho surja em telas que convocam mais os universos íntimos da escrita, da leitura, da recriação da casa (referente ao encontro com, à localização da ou à vivência do interior da casa — ou do livro, ou, numa palavra, da memória), como acontece precisamente nestes casos.
O primeiro peripatético da História, tanto quanto se sabe, foi um grego, de seu nome Aristóteles. Gostava de dar as aulas passeando. Como outros grandes passeantes, o pintor Manuel Vilarinho insta-nos também à prática das deambulações. No seu caso, como já sabemos, de modo mais imediato, pela pintura. Porém, como também já percebemos, não pela pintura como tomada de vista mimética do mundo; mas, antes, pela reconstrução operada pela memória. Mas, como é que esse universo se nutre?
Numa primeira observação, há traços evidentes: na sua pintura cruzam-se muitas referências, fruto de exercícios plurais da visão. Comecemos pela tomada de vistas, pela captura de elementos constituintes. Em ritmo diversificado (lento ou veloz), a pé ou de carro, de comboio ou de avião, habituámo-nos a ver o mundo mudar de face perante os nossos olhos. Em ritmo diversificado (do passo ou do motor), captamos os fragmentos que o olhar toma do todo. Em alguns casos, tais fracções ocuparão memórias ou páginas de livros, ou cairão simplesmente no vazio. No caso do pintor, elas reorganizam-se e tomam corpo sobre o corpo plano da tela. Vêm das mais variadas fontes. Dos seus passeios reais ou ficcionais. E também dos passeios dos escritores — não passa despercebido no seu discurso sobre a pintura o interesse pela literatura, em especial por Robert Walser, cujo retrato aqui surge na tela (2007-2009) que sugere “O último passeio de Robert Walser”—, do tempo das suas páginas, dos lugares interiores que criaram; e dos cenários de todas as telas e paisagens que já passaram sob os olhos de Manuel Vilarinho.
Dada a relação deste pintor com a palavra escrita (acentuada, como notámos, nas produções pictóricas dos últimos anos) e, de modo muito íntimo, com a literatura e os seus processos de tecitura, é difícil não ver na sua pintura um processo construtivo igual ao da narrativa literária: a memória fornece os dados iniciais da composição; e depois a exigência da própria narrativa enforma e esclarece o resultado final.
Naturalmente, e de acordo com o testemunho do autor, a pintura de Manuel Vilarinho nutre-se, em primeira instância, da tradição pictórica ocidental, com particular incidência para as primeiras décadas do século XX. É, com efeito, inegável a recuperação de elementos compositivos e frásicos que nos remetem para experiências de raiz cubista ou para atmosferas próximas das de Amadeo de Souza-Cardoso, para só mencionar as mais notórias. A fragmentação espacial, a inserção de elementos gráficos (sinais de código, letras, setas, o traçado de uma estrada), a integração de figuras (também elas, na sua maioria, em metamorfose e em simbiose com os demais elementos), e a relação com o desenho (umas vezes unificador e estruturador, outras apenas pontuação vaga), levam-nos também a reconhecer aí a influência das gramáticas da vanguarda. Contudo, a gramática compositiva de Manuel Vilarinho evidencia, para lá das referências plásticas, um modo pessoal de recuperação da memória dos espaços e de tudo o que neles habita ou passa.
O passeio tem sempre, por isso, nesta pintura, uma imensa variedade de recortes (uma espécie de colagem operada pela memória). O dos passos, a diversos ritmos, de quem vê; o dos demais que com o pintor se cruzam — sejam companheiros de viagem ou companheiros dos livros (personagens, narrativas ou autores), outro modo de viajar — e o que a memória nele permite construir e recuperar no momento em que a pintura toma o lugar do passado.
Além destes aspectos de reconstrução, cumpre aqui relembrar que a visão — ao invés do que geralmente cremos — não é um sentido directo. Não vemos as coisas à primeira vista. Pelo contrário. Antes de o cérebro ter uma imagem definida, os olhos precisam de se passear em inúmeras direcções e sentidos, avançando e recuando por um ponto da paisagem, um rosto, uma mão. Viagens incessantes de que não temos consciência, mas que são absolutamente necessárias, antes de realmente vermos. Como se isso não bastasse (ou talvez por isso mesmo) a visão é também um sentido selectivo. Ao contrário de uma máquina fotográfica, que não hierarquiza, registando na película (ou no chip) toda a informação que lhe é apresentada, a visão escolhe. Ao centrar-se num ponto, ignora tudo o que o rodeia. Pensemos, por exemplo, num rosto. Não é verdade que a famosa expressão “de olhos nos olhos” é apenas isso, uma expressão — já que nunca conseguimos olhar para os dois olhos de um interlocutor ao mesmo tempo? No confronto com a pintura, esse exercício é igualmente uma constante. O nosso olhar passeia pela superfície do quadro, deambulando de pormenor em pormenor. Afastamo-nos, aproximamo-nos... criamos estratégias para uma visão mais global ou mais detalhada. Mas, no essencial, o exercício permanece: para ver, há que passear os olhos pelo objecto. Seja ele o mundo ou parte do seu fragmentado rosto.
A juntar a estes dados fisionómicos, há mais um, igualmente importante. Assim voltamos à memória. Mais do que uma reconstrução exacta de acontecimentos pretéritos, a memória é uma ficção. Toma acontecimentos reais (já de si filtrados pelas distintas condições da nossa percepção) e transforma-os num todo dotado de coerência própria — ainda que a milhas da realidade.
Não se preocupando com a verosimilhança das suas recordações e assumindo antes a sua teia construtiva como processo narrativo, Manuel Vilarinho apresenta-nos assim os fragmentos reorganizados da sua memória, seleccionando e sedimentando nela a tradição e o seu percurso individual. É essa coerência própria que dota os seus quadros de mistério; da impossibilidade de neles entrarmos com clareza. Não há neles apenas a vontade de abstractizar paisagens, de as condensar numa luz ou em formas difusas que apenas sugiram os elementos do mundo visual — ainda assim de modo recuperável, perceptível, para o espectador. Nas paisagens de Manuel Vilarinho o que encontramos não é nunca o lugar tal e qual (mesmo que o tal e qual seja sempre uma re-presentação e, nesse sentido, uma interpretação), mas os fragmentos de vários olhares que ele pousou no mundo durante uma viagem. O que ficou dessa viagem: um sinal de beira de estrada; um verde mais imponente erguido no corpo de uma árvore; um céu mais azul que rasgava de fogo os tijolos ou as telhas de uma ruína. A cabana de Heidegger na Floresta Negra. O rosto de Robert Walser quase no fim da vida. A dura e branca luz composta de muitas nuances. E até pistas para o prazer da demora: a referência ao ritmo da passada, ao andar (“Spaziergang”).
Mas, então, há elementos reconhecíveis? Sim, claro. Há sempre peças mais eloquentes que outras, na sua possível identificação. Na tela de 2008 intitulada “A Casa de Heidegger em Todtnauberg”, é perfeitamente recuperável o contorno da sua cabana da floresta (é inequívoca, além do mais, a referência a Die Hütte, a minúscula casa que Heidegger comprou em 1922 e na qual escreveu muitas das suas obras), tornando-se dos raros momentos em que o conteúdo da pintura se nos oferece sem necessidade de grande esforço. Também o aqui já mencionado “O último passeio de Robert Walser” decifra parte do mistério. Mas, a verdade, é que o enigma da pintura se mantém intacto. Ou não?
Vejamos: nos demais trabalhos, mesmo deslindado o sentido de alguns fragmentos (em “A leitora incomunicável” encontramos uma parcial representação de uma figura feminina que, dando as costas para o espectador, observa — lê... — algo que nos é negado ver, tanto quanto o seu rosto se nos nega, deixando-nos sozinhos face ao quadro) essa fracção que nos é iluminada, essa porta de significado que tão gulosamente buscamos, apenas adensa o mistério do conjunto, sublinhando a impossibilidade de uma leitura inequívoca.
Nesse aspecto, há que relembrar que a história da pintura há muito nos habituou a uma lógica intrínseca das imagens que resulta sempre menos clara para quem nelas busca a linearidade dos conteúdos. Se tudo fosse simples, porque nos inquietaria ainda o sorriso da Mona Lisa? Porventura, nada de mais simples do que um retrato que nos enfrenta, desassombrado sobre o seu fundo de paisagem. E, no entanto... A pintura, sabem-no os pintores desde sempre, tem uma lógica íntima. Própria. Não se compadece com o mundo, mesmo quando procura ser mimética. O que ela conta não existe na realidade — quanto mais não seja por fingir introduzir o mundo tridimensional num espaço reduzido a duas dimensões.
No caso da pintura de que agora nos ocupamos, como já percebemos, essa ilusão nem sequer é perseguida. Não existe aqui qualquer necessidade de imitar o mundo. Apenas de o relembrar em alguns dos seus sinais que, de tão particulares — pelas mais diversas razões pictóricas —, podem ficar na memória e obrigar depois a contar a memória do passeio de um modo em que eles surgem com evidente relevo.
A cor, a luz e o modo como toda a composição se apresenta, eternamente quebrada (e desprovida, portanto, de um sentido linear), obrigam, por outro lado, a que também nós exercitemos o olhar, percorrendo todos os recantos da pintura em busca de um esclarecimento para o mistério formal, adensado pelos enigmáticos títulos. O exercício do olhar — por muito que a pintura exercite a pincelada de modos diversos, mais amplos ou mais concentrados, conforme as telas, e também nesse caso nos prenda a atenção ao pormenor técnico — prende-se sobretudo com a tentativa de recuperar os elementos quebrados da narrativa na intensa luz dos quadros. Porém, o labirinto erguido pelo pintor adensa-se a cada passo que damos.
Ao longo dos anos, a paleta de Manuel Vilarinho parece ter-se alterado pouco, mantendo o gosto pelos contrastes vibrantes — excepção feita, como vimos, para algumas peças mais surdas, por mais ligadas ao exercício puro do desenho — e pelas zonas de intensa luz que tão bem sublinham as zonas mais nocturnas da composição. As cores frias predominam em jogos de azuis e verdes, e abrem janelas em manchas de vermelhos e ocres, mantidas em contenção formal por áreas de negros e cinzas e brancos dotados de diferenciados graus de transparência e claridade. E, servidas por esses gestos e essas cores, as narrativas têm também sabido manter a sua coerência, na ausência de sequência, na apresentação de flashes.
Uma simples pista para o mistério pode ser, então, o convocar das nossas próprias memórias quando tentamos contar a nossa história. Ou as que ouvimos. Não é por acaso que quem conta um conto acrescenta um ponto. A diferença, no caso de Manuel Vilarinho, é que ele o faz com cores e pinceladas vigorosas, em cuja luz nos perdemos. Em pleno passeio. Enjoy the ride!
 
Emília Ferreira