A pintura de um pintor
que pintou uma maçã a sair em fruto
de pintura para fora do quadro.
O método
de pintar de Manuel Vilarinho, é elaborativo,
reconstitutivo, dispersivo e gozoso.
O primeiro
item, justifica-se na relativa clareza de uma
pintura composta de modo gradual e exaustivo.
O autor desta saborosa devoração
pictural, parte para a ocupação
do suporte vazio com um determinado plano de pintura,
para, aí, no próprio acto de a fazer,
confrontar aquele com os imprevistos de um decisivo
investimento sensorial.
A imagem do
estraçalhamento, esclarece generosamente
este modo de conquistar a pintura e os seus prazeres.
O olhar deste pintor, sonega o ponto de vista
apriorístico de uma lógica representativa
do universo, que os renascentistas teorizaram
e a ciência confirma, como sendo a exacta
medida do olhar humano.
'Paulo-o-louco',
como chamavam a Ucello - diz Vasari nos seus divulgados
Vite - «sentia-se sempre atraído
pelas coisas mais difíceis da arte».
Era um obcecado «pelas doçuras da
perspectiva», isto é, pela estereometria
que se dissimula sob as formas naturais: por isso,
com grande horror de Vasari, pintava «campos
azuis, cidades vermelhas e edifícios de
todas as cores, ao sabor da sua fantasia».
Na Battaglia
di San Romano (cf. Galleria degli Uffizi,
Firenze), um dos três combates que pintou
para o palácio dos Medicis, o efeito de
estranheza, encontra-se na sobreposição
do olhar do pintor ao seu desejo mental de impôr
uma lógica a tudo quanto é fortuito.
Ucello, teria uma ideia obstinada de tomada do
espaço, para lhe colher os frutos, numa
encantada disseminação de pequenas
cenas, sem qualquer lógica de perspectiva
exterior ao quadro.
O olhar do
pintor está dentro do quadro, domina-o
através de uma coexistente multiplicidade
de sensações visuais, que obrigam
o acto de olhar a cavalgar no interior do dito
quadro. Assim, forçado a perder o ponto
de vista imóvel e distanciado da 'ordem
divina' de um Piero, este olhar não esconde
a sua obsessão pela posse da perspectivação,
mas conquistando-a a partir do ponto de vista
único e móvel do cavaleiro (o termo
subjectivo também serve).
A cena dos
combatentes a cavalo, no primeiro plano, entre
lanças, balestras, cadáveres, estandartes
e trombetas, forma uma massa em perspectiva, por
esquisitos, inquietantes e extensivos efeitos
de superfície, como a falsa profundidade
da paisagem.
Esta breve
referência erudita, introduz a explicação
do segundo item e do terceiro item também.
Horror ao
vazio e confronto de pontos de vista no quadro:
são explícitas constantes destas
pinturas de Manuel Vilarinho.
A composição,
é dominada a partir do centro focal do
quadro. É frontal e quase imóvel
porque baloiça. Não conduz em frente
e para um ponto de fuga central. Lança
o olhar numa errância sensorial e nostálgica
- a percorrer a relação de disparidade
das cenas e figuras, disseminadas pela tela. A
sua compartimentação lembra processos
da BD e até da 'pop art'.
Chegam de
memórias de lugares e de sensações,
longínquas umas, próximas outras,
e como se ao mesmo tempo. O exacto tempo em que
este pintor as convoca e onde reconstitui, para
si próprio, os sinais de uma distância
feita
de desvios ao lugar que ele determina. N'O
pintor e a distância, Manuel Vilarinho
auto-retrata-se a pintar dentro
de uma pintura. A entrada no quadro é lateral.
Aí, está dentro e de frente para
a pintura.
São
insistentes as referências ao atelier: a
oficina onde se sente, pensa e faz a pintura.
Por registos
de alguns dos seus géneros mais tradicionais.
Paisagens naturalistas (campinas, marinhas) e
muita natureza-morta.
Também
notações à história
da pintura. Ao Amadeo de 1916-17, a soluções
espaciais chiriquianas do Dacosta dos anos 40,
à sensualidade de Viana. Gostos confessados
por Manuel Vilarinho.
Todos estes
elementos se equivalem, nas suas subtis relações
de ilogismo. Objectos subtraídos ao seu
ambiente
natural e combinadas por absurdas aproximações.
A quebra da naturalística relação
de familiaridade entre eles, transforma-os em
entidades dotadas de poder e vida autónomas.
Daí,
a presença constante da natureza-morta.
Ela permite explicitar o quarto item. Representar
o hedónico e o fantástico com os
meios do mais puro realismo. Laranjas, bananas,
uvas, peras, maçãs e pincéis:
os frutos que a pintura oferece ao seu pintor.
A linha contorna-os e o pintor colhe-os como formas,
por onde um Dançarino Etrusco
(título da anterior série de pinturas
de Manuel Vilarinho) entesoura as cores (contemporâneas)
d' A paleta na praia. |